O cérebro é considerado um órgão uso-dependente, capaz de se modificar com a experiência, de aprender e de lembrar. Tais capacidades dependem da habilidade do cérebro de codificar as experiências pelas quais passamos, e de evocá-las quando necessárias. Isto á a memória, e sua função não é tanto lembrar as coisas do passado, mas desenvolver sistemas de compreensão de mundo, e de nós mesmos no mundo. Nosso cérebro, em função das experiências vividas, atribui significados, antecipa o que virá e nos prepara para lidar com situações de forma eficiente. Vamos aprendendo a agir, sentir e imaginar pelos padrões de comportamento e resposta ambiental que vamos vivendo, sem o reconhecimento consciente da influência que as experiências passadas têm sobre a realidade presente.
A memória implícita envolve partes do Sistema Nervoso que não necessariamente requerem processamento consciente durante a codificação ou a recuperação: circuitos neuronais fundamentais para as experiências cotidianas, que já estão prontos e funcionais no nascimento, e fazem parte da fundação do nosso senso subjetivo: as estruturas envolvidas são, principalmente, a amígdala, gânglios da base e cerebelo, e substância negra.
Através das experiências repetitivas do dia a dia do bebê, este vai sendo capaz de diferenciar, de detectar semelhanças e diferenças naquilo que experimenta, pela ação das estruturas citadas, e vai formando modelos mentais do mundo e de si mesmo no mundo. Estas generalizações são as primeiras formas de aprendizado, que ajudam o bebê a interpretar os acontecimentos e antecipar suas consequências. Formam-se, logo de início, padrões de expectativas e de percepção, uma vez que a memória dos acontecimentos vividos e repetidos nos faz funcionar de forma seletiva, integrativa e interpretativa. A todo momento o cérebro tenta entender o que está acontecendo – interpretar – classificar essa experiência em termos de um modelo mental, que automaticamente seleciona que estímulos serão priorizados para a percepção, facilitando a resposta. Quando Mariana joga o sapatinho tentando parar o trem, por exemplo, ela está tentando por em prática alguma relação de causalidade que inferiu ao observar como o mundo funciona.
Um bebê que tem uma relação de apego seguro com seu cuidador, por exemplo, passa por várias situações nas quais a expressão de seu desconforto – fome – é compreendida pela mãe, que oferece, ao mesmo tempo, o alimento em tempo hábil, e a compreensão simbólica daquilo que o bebê sente. A mãe continente contém seu bebê nos braços e na mente. Tal bebê aprenderá, através de sua memória implícita, que o mundo é um lugar que responde às suas demandas de forma eficiente e sensível. Se a cada vez que esta imagem de mundo sofrer um abalo, ela puder ser retomada a tempo, o mundo será percebido como previsível, e o bebê ficará menos exposto à ansiedade, tendo o caminho de desenvolvimento de suas capacidades facilitado pela experiência de ser capaz de produzir no mundo, quando da expressão de suas necessidades, a reposta tranqüilizadora. Sua memória implícita antecipará que o futuro continuará a prover comunicação contingente
As experiências de um bebê com apego inseguro, da mesma forma, ficarão registradas por sua memória implícita, influenciando seu comportamento, distorcendo positiva ou negativamente sua percepção de mundo, interferido em suas expectativas de futuro. Não há consciência desta influência, uma vez que a memória implícita não envolve a lembrança de fatos, mas a expectativa de padrões de interação com o mundo. O bebê poderá desenvolver, por exemplo, uma representação de mundo cheia de distância ou medo, já que seus sistemas de memória implícita o levam a generalizar desta maneira as experiências vividas. Podemos ver muitos desses padrões de memória implícita nas histórias de Mariana, quando ela conta sobre o clima emocional da família e suas expectativas em relação ao histórico escolar, tanto dela quanto de seu irmão de olhos azuis.
A memória implícita é a forma mnêmica predominante dos primeiros anos de vida, mas persiste ao longo da vida toda, formando o tom básico do sentimento de si mesmo no mundo, que é o que Jung definiu como complexo: sistemas de imagens ou sentimentos que fazem com que a percepção da realidade e os afetos que a ela se relacionam sejam determinados por padrões inconscientes.
No primeiro aniversário da criança, estes padrões repetidos do aprendizado implícito já estão fortemente codificado no cérebro. Com a cronificação disso, passam a se tornar traços de personalidade. Mariana descreve isso quando relata sua experiência com a boneca desejada, e as articulações para ser fotografada com ela, dentro de uma atmosfera emocional que inaugura uma época sem sorrisos. Assim, nossas vidas podem ser formadas por reativações de padrões de memória implícita ou, na linguagem da Psicologia Analítica, por ativações de complexos, sem que percebamos que algo está sendo evocado. Nós simplesmente entramos em determinados estados emocionais, e os experimentamos como uma realidade de experiência do momento presente, sem percebermos que se trata da reativação de um padrão.
Aos 18 meses, na mesma época em que a maturação de várias partes do cérebro já permite a compreensão e a expressão da linguagem, as porções frontais estão se desenvolvendo rapidamente, oferecendo condição para que uma nova forma de memória se associe à anterior: a memória explícita ou evocativa, na qual a criança consegue trazer fatos à mente, com registros de si mesma e sua atuação no mundo interno, assim como de suas emoções ou intenções no momento, como por exemplo, o evento relatado por Mariana de brincar com o chapéu do avô, com os jogos de aparece-esconde do mundo e as posteriores consequências de não enxergar seus passos.
As memórias explícitas organizam-se sobre a tessitura dos padrões implícitos. O conhecimento destes, associado à conscientização dos padrões que determinam o mosaico de memórias explícitas que formam nossa narrativa de vida, nos dá a oportunidade de nos libertarmos das amarras do passado. Um cérebro vivo, em constante transformação, forma o substrato de uma psique capaz de individuar, entendendo aqui a individuação como o melhor desenvolvimento possível dos potenciais de cada um.
Referências:
KNOX, J. The relevance of attachment theory to a contemporary Jungian view of the internal world: internal working models, implicit memory and internal objects. Journal of Analytical Psychology, n.44, 511-530, 1999.
SIEGEL, D. The Developing Mind. The Guilford Press, London 1999.
Ana Maria Galrão
A memória implícita envolve partes do Sistema Nervoso que não necessariamente requerem processamento consciente durante a codificação ou a recuperação: circuitos neuronais fundamentais para as experiências cotidianas, que já estão prontos e funcionais no nascimento, e fazem parte da fundação do nosso senso subjetivo: as estruturas envolvidas são, principalmente, a amígdala, gânglios da base e cerebelo, e substância negra.
Através das experiências repetitivas do dia a dia do bebê, este vai sendo capaz de diferenciar, de detectar semelhanças e diferenças naquilo que experimenta, pela ação das estruturas citadas, e vai formando modelos mentais do mundo e de si mesmo no mundo. Estas generalizações são as primeiras formas de aprendizado, que ajudam o bebê a interpretar os acontecimentos e antecipar suas consequências. Formam-se, logo de início, padrões de expectativas e de percepção, uma vez que a memória dos acontecimentos vividos e repetidos nos faz funcionar de forma seletiva, integrativa e interpretativa. A todo momento o cérebro tenta entender o que está acontecendo – interpretar – classificar essa experiência em termos de um modelo mental, que automaticamente seleciona que estímulos serão priorizados para a percepção, facilitando a resposta. Quando Mariana joga o sapatinho tentando parar o trem, por exemplo, ela está tentando por em prática alguma relação de causalidade que inferiu ao observar como o mundo funciona.
Um bebê que tem uma relação de apego seguro com seu cuidador, por exemplo, passa por várias situações nas quais a expressão de seu desconforto – fome – é compreendida pela mãe, que oferece, ao mesmo tempo, o alimento em tempo hábil, e a compreensão simbólica daquilo que o bebê sente. A mãe continente contém seu bebê nos braços e na mente. Tal bebê aprenderá, através de sua memória implícita, que o mundo é um lugar que responde às suas demandas de forma eficiente e sensível. Se a cada vez que esta imagem de mundo sofrer um abalo, ela puder ser retomada a tempo, o mundo será percebido como previsível, e o bebê ficará menos exposto à ansiedade, tendo o caminho de desenvolvimento de suas capacidades facilitado pela experiência de ser capaz de produzir no mundo, quando da expressão de suas necessidades, a reposta tranqüilizadora. Sua memória implícita antecipará que o futuro continuará a prover comunicação contingente
As experiências de um bebê com apego inseguro, da mesma forma, ficarão registradas por sua memória implícita, influenciando seu comportamento, distorcendo positiva ou negativamente sua percepção de mundo, interferido em suas expectativas de futuro. Não há consciência desta influência, uma vez que a memória implícita não envolve a lembrança de fatos, mas a expectativa de padrões de interação com o mundo. O bebê poderá desenvolver, por exemplo, uma representação de mundo cheia de distância ou medo, já que seus sistemas de memória implícita o levam a generalizar desta maneira as experiências vividas. Podemos ver muitos desses padrões de memória implícita nas histórias de Mariana, quando ela conta sobre o clima emocional da família e suas expectativas em relação ao histórico escolar, tanto dela quanto de seu irmão de olhos azuis.
A memória implícita é a forma mnêmica predominante dos primeiros anos de vida, mas persiste ao longo da vida toda, formando o tom básico do sentimento de si mesmo no mundo, que é o que Jung definiu como complexo: sistemas de imagens ou sentimentos que fazem com que a percepção da realidade e os afetos que a ela se relacionam sejam determinados por padrões inconscientes.
No primeiro aniversário da criança, estes padrões repetidos do aprendizado implícito já estão fortemente codificado no cérebro. Com a cronificação disso, passam a se tornar traços de personalidade. Mariana descreve isso quando relata sua experiência com a boneca desejada, e as articulações para ser fotografada com ela, dentro de uma atmosfera emocional que inaugura uma época sem sorrisos. Assim, nossas vidas podem ser formadas por reativações de padrões de memória implícita ou, na linguagem da Psicologia Analítica, por ativações de complexos, sem que percebamos que algo está sendo evocado. Nós simplesmente entramos em determinados estados emocionais, e os experimentamos como uma realidade de experiência do momento presente, sem percebermos que se trata da reativação de um padrão.
Aos 18 meses, na mesma época em que a maturação de várias partes do cérebro já permite a compreensão e a expressão da linguagem, as porções frontais estão se desenvolvendo rapidamente, oferecendo condição para que uma nova forma de memória se associe à anterior: a memória explícita ou evocativa, na qual a criança consegue trazer fatos à mente, com registros de si mesma e sua atuação no mundo interno, assim como de suas emoções ou intenções no momento, como por exemplo, o evento relatado por Mariana de brincar com o chapéu do avô, com os jogos de aparece-esconde do mundo e as posteriores consequências de não enxergar seus passos.
As memórias explícitas organizam-se sobre a tessitura dos padrões implícitos. O conhecimento destes, associado à conscientização dos padrões que determinam o mosaico de memórias explícitas que formam nossa narrativa de vida, nos dá a oportunidade de nos libertarmos das amarras do passado. Um cérebro vivo, em constante transformação, forma o substrato de uma psique capaz de individuar, entendendo aqui a individuação como o melhor desenvolvimento possível dos potenciais de cada um.
Referências:
KNOX, J. The relevance of attachment theory to a contemporary Jungian view of the internal world: internal working models, implicit memory and internal objects. Journal of Analytical Psychology, n.44, 511-530, 1999.
SIEGEL, D. The Developing Mind. The Guilford Press, London 1999.
Ana Maria Galrão
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